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domingo, 27 de fevereiro de 2011

O escritor Moacyr Scliar morre aos 73 anos ( Brazilian Novelist , Moacyr Scliar, dies at 73 )

Moacir Scliar, escritor e imortal da Academia Brasileira de Letras , faleceu no hospital de Clínicas  na madrugada desse domingo por falência múltipla dos órgãos. Ele estava hospitalizado desde de Janeiro  quando sofreu um AVC  aqui mesmo na cidade de Porto Alegre.
Filho de imigrantes judeus da Bessarábia (Rússia), Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 23 de março de 1937. Médico sanitarista, o escritor começou na literatura escrevendo, em 1962, uma série de contos sobre sua formação. O primeiro romance, A Guerra no Bom Fim, levou o nome do bairro onde nasceu e cresceu na capital gaúcha.
Moacyr Scliar, novelist and imortal of  Brazilian Academy of Letters  died in a hospital early Sunday of multiple organ failure. He had been hospitalized since suffering a stroke on January  here in  Porto Alegre.
The son of Jewish immigrants from Bessarabia (Russia), Moacyr Scliar was born in Porto Alegre on March 23, 1937. Sanitary doctor, the writer began writing  in literature in 1962, a series of stories about their formation.  The first novel, “The War in Bom Fim”, took the name of the neighborhood where he was born and raised in the state capital.


 



Moacyr Scliar

“Falar com Deus? Só se for com ligação a cobrar”

Quem poderia imaginar que um menino franzino, pobre, iria se transformar num escritor conhecido em todo o Brasil e em mais de 20 países? Ele insistia em escrever pequenas histórias em papel de enrolar pão. E lia tudo que caía em suas mãos. Não tinha como dar errado.
Moacyr Scliar, aos 65 anos, é um escritor consagrado. Tem 63 livros editados – entre romances, contos, novelas e coletâneas – e, entre os brasileiros suficientemente letrados, é difícil que alguém não tenha lido pelo menos uma de suas obras.
Exemplos: Deuses de Raquel, A Guerra no Bom Fim, O Exército de um Homem Só, Mês de Cães Danados, O Centauro no Jardim e A Estranha Nação de Rafael Mendes. Alguns de contos, como O Carnaval dos Animais, O Olho Enigmático e A Orelha de Van Gogh. Crônicas com destaque para A Massagista Japonesa e Dicionário do Viajante Insólito.
Scliar é tão famoso que o prêmio literário Booker Prize, o mais importante da língua inglesa, foi dado neste ano ao canadense Yann Martel. Até aí nada demais. Acontece que o espertinho do Martel escreveu Life of Pi “inspirado” em Max e os Felinos, de Scliar. Inspirado é uma gentileza, porque na verdade o malandro chupou integralmente a história do porto-alegrense, publicada 12 anos antes. É, o nosso entrevistado ajudou Martel a faturar 50 mil euros.
Moacyr, com seu jeito simples, diz que o chato da história é que a cópia foi premiada no lugar do original. Mas, com calma, vai ler a cópia e saber com advogados o que pode ser feito. “Afinal, ele pode não ter plagiado o livro inteiro, mas a idéia central é a mesma”, explica.
Moacyr Scliar nos recebeu num final de tarde, em seu apartamento no bairro Santa Cecília, em Porto Alegre. Nada parecido com a casa em que viveu a infância, no vizinho bairro Bom Fim.
A propósito: Scliar afirma que vendeu dez milhões de livros. Se ganhou um dólar por livro...


PRESS: Como foi a tua infância?
SCLIAR: Minha infância foi no bairro Bom Fim. Só me dei conta de que fui pobre depois que melhorei de vida. Sou filho de imigrantes, e meu pai nunca passou de um pequeno empresário. Chegou aqui, bem dizer, sem nada. Uma família de nove irmãos. Minha vó era viúva, minha mãe também era imigrante, mas ela conseguiu estudar, foi professora e lecionou no grupo escolar que antecedeu o Colégio Israelita Brasileiro. Nós morávamos em uma casinha muito simples, não tinha água quente, não tinha fogão a gás e nem banheiro. Tinha tanto rato que eu brincava com eles. Nós vivíamos muito precariamente, mas nunca senti isso. O fato de ser um bairro comunitário, em que as pessoas conviviam muito umas com as outras e se ajudavam, acho que neutralizava um pouco essa sensação de desamparo que a pobreza tem. Meu pai fez várias coisas, ele foi empregado de uma fábrica, foi um pequeno lojista, no fim ele e um irmão, que era o pai do pintor Carlos Scliar, entraram em sociedade em uma fábrica de acolchoados. Aí melhoramos de vida, passamos a uma vida de classe média.

PRESS: Como era o convívio no Bom Fim, um bairro judeu?
SCLIAR: Não era só judeu, tinha famílias de outras origens, nossos vizinhos eram portugueses imigrantes, italianos, era um bairro muito diversificado. Uma coisa impressionante era como aquele bairro fervia, eu só me lembro das ruas cheias de gente, isso é uma coisa impressionante que tu não vês mais hoje em dia: grupos enormes de pessoas pelas ruas conversando, e isso de dia e à noite. É claro que devia ser porque naquele tempo as casas eram tão precárias que as pessoas preferiam ficar na rua. A criançada e as famílias conviviam na rua, pois não existia trânsito intenso naquela região, se jogava futebol no meio da rua.

PRESS: Tu estudaste onde?
SCLIAR: Eu estudei primeiro no Colégio Israelita, que se chamava na época Escola de Educação e Cultura, um grupo escolar, para umas cem crianças, mais ou menos. Depois eu estudei no Colégio Rosário, meus pais e meus tios tinham uma concepção de que era um colégio disciplinador, por ser dos Irmãos Maristas, e a garotada precisava de disciplina. E realmente era um colégio disciplinador, levava os alunos na rédea curta. Foi ótimo, aprendi muita coisa. Também foi um conflito, tinham poucos alunos que não eram católicos, eu era um deles. Não existia discriminação, mas eu sentia um conflito muito grande porque o que me ensinavam é que eu ia para o inferno e não tinha jeito de modificar isso. Eu cheguei a perguntar para o professor e ele me disse que se eu fosse muito bonzinho, me comportasse bem e fosse justo, eu iria para o purgatório. Mas isso foi há muito tempo, não acontece mais. Em compensação o ensino era muito bom, eu tinha onze anos e escrevia em latim, escrevia cartas e redações em latim. Aí depois fiz o que se chamava de ginásio. E fiz o científico no Júlio de Castilhos. O Julinho era completamente diferente, era um centro de cidadania, um lugar de grandes debates, um grêmio estudantil muito atuante.
Nessa época eu já estava escrevendo. Comecei muito cedo, ainda menino, escrevendo em papel de pão, porque caderno era muito caro. Escrevia contos, histórias do dia-a-dia, imitava os escritores que eu lia, como Monteiro Lobato e Erico Verissimo, que tinham muitas obras para crianças.

PRESS: Essas eram as tuas leituras?
SCLIAR: Eu lia o que a minha geração lia, Monteiro Lobato, edições da Globo, que eram ótimas, verdadeiras obras de arte ilustradas por artistas que eram muito influenciados pelo expressionismo alemão. Esses livros, do ponto de vista gráfico, são obras-primas, e com histórias maravilhosas. Ler era uma coisa que fazia parte do meu cotidiano. Minha mãe e eu tínhamos um trato: uma vez por mês íamos à Livraria do Globo. Eu ficava absolutamente deslumbrado. Na nossa casa podia faltar comida, mas livro não faltava.

PRESS: E a Medicina, quando surgiu?
SCLIAR: A Medicina foi surgindo aos poucos, e nesse ponto a minha motivação era diferente. Tinha um medo terrível de doenças. Não é que eu não gostasse de ficar doente, até gostava porque podia ficar em casa, não precisava ir ao colégio. Mas quando meus pais ficavam doentes eu ficava desesperado, era o medo da perda. Aí comecei a ler sobre doenças e tinha um médico no Bom Fim, o doutor Mauricio, e eu perguntava tudo para ele.

PRESS: Interesse pela Medicina, mas não deixava de escrever.
SCLIAR: É, lembro que todos diziam assim: aí vem o escritor. Eu era conhecido no Bom Fim como o menino que escrevia. Sempre que tinha uma festa me pediam para escrever o discurso. Esse estímulo dos adultos foi muito importante, não é muito freqüente, porque não são todos os pais que levam a sério uma profissão tão incomum, mas os meus pais tinham aquela coisa de venerar a cultura. A família Scliar era uma família que, apesar de pobre, tinha muitos componentes ligados à cultura. O Carlos Scliar era pintor, o Salomão Scliar era um fotógrafo muito bom, Ester Scliar era compositora, Leonor Scliar era professora de literatura, enfim, a nossa família era conhecida como uma família de gente culta.

PRESS: E então tu foste para a Medicina, chegaste a clinicar?
SCLIAR: Sim, cheguei a clinicar. Eu fiz residência em medicina interna. Fui ser clínico do Hospital Sanatório Partenon e lá comecei a me interessar pela tuberculose como uma doença de saúde pública. Não estava lá para tratar a tuberculose, estava lá para tratar os problemas clínicos que eles teriam, mas acabei me interessando. Fui fazer um curso sobre esse assunto, aí lá pelas tantas um pessoal me procurou com um convite para trabalhar na Secretaria da Saúde do Estado. Aí eu fui, e era uma equipe brilhante, marcou época na saúde pública do Estado. A maior parte dos meus colegas daquela época trabalham, hoje, em organismos internacionais.

PRESS: Na época da faculdade fazias política?
SCLIAR: Eu não era filiado, mas o meu time cabia neste rótulo de esquerda, não muito bem definido. Essa idéia de fazer uma medicina social, que é uma idéia que tenho até hoje. Tinha uma ingenuidade, umas ilusões que não tenho mais. Mas tinha alguns pensamentos que ainda tenho até hoje. Quando me formei em Medicina fiz um discurso muito polêmico, tão polêmico que o reitor se levantou e respondeu ao discurso, coisa que nunca tinha acontecido. O discurso, simplificando, dizia que a miséria brasileira comprometia a saúde, o que foi considerado um discurso engajado. Uma coisa curiosa foi o seguinte: o discurso fui eu quem fez, mas submeti aos colegas, embora tivesse sido designado pela maioria para fazê-lo, mas tinha muita gente que não havia votado em mim. Mas mesmo esses aprovaram.

PRESS: Este teu engajamento político chegou a te fazer pensar em entrar para a política?
SCLIAR: Não, nunca entrei em partido nenhum, e continuo achando que intelectual não pode ser uma pessoa que tenha vínculos partidários, porque inevitavelmente ele perde a neutralidade que, se ele não tem, terá que procurar.

PRESS: Nunca assinaste nenhum manifesto?
SCLIAR: Assinei, mas nunca eram manifestos a favor de candidatos. Houve época em que uma coisa que nós tínhamos que fazer era apoiar a liberdade de expressão. Em 70 ganhei o Prêmio Guimarães Rosa e fui lá receber das mãos do Aureliano Chaves, que era o governador de Minas Gerais. E na hora criei coragem e pedi pela liberdade de expressão. Nunca fui para esse lado de partido, porque não gosto de ter inimigos, eu acho que o cara que não gosta de ter inimigos não pode ser político, porque político tem amigos e inimigos. Como eu só quero ter amigos...

PRESS: Falaste em algumas desilusões. Quais as desilusões na Medicina e na política?
SCLIAR: A grande desilusão da minha geração foi o stalinismo. A revelação daqueles crimes, mais exatamente em 1956 no congresso do Partido Comunista da ex-União Soviética. As pessoas que eram de esquerda ficaram abaladíssimas, não queriam acreditar. Enfim, os erros e crimes descobertos... Já a saúde pública é uma área de atividade em que as pessoas podem ser de partidos diferentes, mas há uma notável unanimidade. De maneira geral, elas coincidem nas opiniões.

PRESS: Como está a saúde pública no Brasil?
SCLIAR: Melhorou e continua melhorando. Se você disser assim: melhorou o que deveria ter melhorado? Não, podia ter melhorado muito mais. Esse Programa de Saúde da Família é um belo programa, racional, que tem tudo para dar certo, funciona bem. Sei disso porque sou professor de medicina preventiva na Faculdade Federal de Ciências Médicas, e vou com os meus alunos lá para a Vila São José do Murialdo. É claro que se tu fazes medicina tu queres ter aqueles recursos tecnológicos que os paises desenvolvidos oferecem. Mas isso acontece em países desenvolvidos, não aqui no Brasil, em que tens que trabalhar com a prevenção. Quando eu comecei a trabalhar em saúde pública ainda tinha que convencer as pessoas a tomar vacinas, porque tinham medo. Hoje em dia basta anunciar a campanha que as pessoas vão. A cultura mudou.

PRESS: O primeiro livro como foi construído e como foi lançado?
SCLIAR: Costumo dizer assim, que eu tenho o livro número um e o número zero. O livro número zero resultou das minhas histórias como estudante de Medicina. Com essa vivência ia escrevendo e publicando meus contos no jornal da Faculdade, que se chamava Bisturi. Alguns colegas achavam estranho esse negócio de escrever historinha e outros gostavam muito. E esses que gostavam me disseram para publicar um livro. Próximo à época da formatura... isso é interessante, porque faz exatamente 40 anos, e o livro saiu nesta época, outubro, novembro... Procurei um amigo que tinha uma pequena editora. Ele não levava fé nenhuma, e com toda a razão, mas como era amigo não podia dizer que não. Fizemos 500 livros. O título era “Histórias de um Médico em Formação”. Foi um sucesso, porque meus pais obrigavam todo mundo a comprar. Minha mãe ia de porta em porta dizendo: “Olha, saiu o livro do meu filho”. Houve alguns comentários, é claro, aí comecei a reler o livro e me dar conta de que tinha algumas coisas que estavam mal redigidas, algumas histórias mal construídas, mal terminadas. Era um livro de amador. Olha, entrei em depressão e comecei a achar que tinha me enganado, que só eu achei que era escritor. E decidi trabalhar só com Medicina. Nos seis anos seguintes continuei a escrever, é claro, mas daí eu aprendi. Escrevia, guardava, depois relia e seis anos depois tinha uma coleção de histórias e, tinha certeza, era o melhor que eu poderia fazer. E se isso não é bom então é porque eu não sou escritor. Aí procurei o Carlos Appel, que tinha a Editora Movimento, que estava começando. O livro teve uma repercussão extraordinária. Na época tinha um crítico, que ainda está aí, que é o Wilson Martins, considerado o papa da crítica literária brasileira, um homem extremamente exigente, e ele fez uma crítica muito boa. Logo depois ganhei um prêmio da Academia Mineira de Letras, daí para frente não parei mais. Isso foi em 68, um livro muito marcado pelo clima daquela época. São todas histórias alegóricas, como diz o titulo, “Carnaval dos Animais”. São ensaios em que muitos personagens são animais e animais ferozes e devoradores. Nesse tempo havia um desenvolvimento, uma movimentação muito grande na literatura latina. Foi a melhor época da literatura latino-americana.

PRESS: A literatura era uma válvula de escape para a expressão.
SCLIAR: Exatamente, quem melhor captava isso era Gabriel García Márquez. O movimento que ele liderava era uma tendência literária que consistia em escrever as coisas mais absurdas como se elas tivessem acontecido.
“O Carnaval dos Animais” reflete muito a realidade desta época. Depois, comecei a escrever romances. O primeiro romance, “Guerra no Bom Fim”, e depois obras como “Deuses de Raquel”, e as seguintes também falavam muito das pessoas que viviam no Bom Fim. Mas aos poucos fui me afastando do bairro.

PRESS: Tu tens alguns temas recorrentes, não?
SCLIAR: A imigração judaica é um tema recorrente, e é um tema que acho muito interessante. A experiência do imigrante é uma experiência inusitada. O imigrante é um cara que chega no país e o vê com um olhar diferente. Ele é capaz de perceber coisas da realidade que as pessoas que estão aqui não percebem. Eles têm uma história, de um lado, pesada, por causa do sofrimento, e por outro lado uma cultura fantástica e uma coisa que acho muito importante que é esse humor melancólico, um humor sofrido, que não é para se dar gargalhadas, é para, no máximo, sorrir, uma defesa contra o sofrimento. A outra experiência que me marcou foi a da área da saúde. Escrevia-se muito sobre isso, porque a verdade é que a experiência da saúde pública brasileira é uma coisa riquíssima. Um personagem que conheci era um médico também judeu, o Noel Nutels, da mesma região dos meus pais. Enquanto trabalhei com tuberculose ele trabalhou com os índios e eu achava isso fascinante, porque era um cara que nem brasileiro era.

PRESS: Os judeus, de certa forma, até pelo drama da guerra, sempre assumiram um papel de vítimas, e há uma corrente que quer dar também um papel de agente e até de vilão. Como é que tu vês essas contestações?
SCLIAR: Vocês estão se referindo a Israel. Em primeiro lugar, Israel é um Estado, com governo, é um país. Esses tempos foi feita uma comparação não só equivocada como ofensiva, que foi do escritor português José Saramago, um homem que respeito muito, de quem sou amigo. Ele disse assim: “O Estado de Israel faz com os palestinos o que os nazistas fizeram com os judeus”. Isso é um absurdo. Em primeiro lugar os nazistas mataram milhões de pessoas indefesas que não fizeram mal nenhum a eles, só baseados naquela ideologia da raça superior. O Estado de Israel, como governo, ele pode até cometer erros, pode até cometer arbitrariedades, e não tenho dúvida de que freqüentemente os direitos humanos são violados, mas a situação é inteiramente diferente. Sou a favor da paz, sou a favor do dois Estados, Israel e Palestina. Acho que há duas coisas que atrapalham o processo de paz: uma delas é o terrorismo, e a outra são essas colônias que são povoadas por fanáticos. Jerusalém é uma coisa que é complicada, mas não é impossível de resolver. As coisas lá precisam ser resolvidas gradualmente, primeiro tem que resolver esse grande problema que é a criação de um Estado Palestino. É claro que num território que permita a eles um mínimo de autonomia. Eles entraram em um círculo vicioso, em que não se sabe mais quem está fazendo represálias a quem.

PRESS: Onde isso vai desembocar?
SCLIAR: Tenho esperança de que, até por exaustão, eles caiam no bom senso. Porque há vozes ponderadas, tanto entre os israelenses quanto entre os palestinos. Tem muita gente a favor do diálogo, existem muitas iniciativas de cooperação.

PRESS: Tens alguma coisa a ver com os palestinos?
SCLIAR: Tenho. Estive em Israel e fiz um curso. Conheci um sheik e ia até ia tomar café com ele. Era uma pessoa extremamente cordial. Trabalhei lá em um hospital público, e havia palestinos e israelenses hospitalizados no mesmo lugar. Os extremistas são minoritários, mas são extremamente agressivos e eles têm o poder de desestabilização. Estava lá, para um encontro de escritores, num dia em que teve um atentado. Botaram uma bomba em um ônibus no centro de Jerusalém. Acordei, eram sete da manhã com o barulho das sirenes, liguei a TV e exatamente naquela hora tinha acontecido o atentado, e eu fui até lá ver. O que vi foi a rua cheia de sangue, pedaços de gente, aquele ônibus que estava lotado completamente destruído, e a multidão israelense indignada, querendo vingança.

PRESS: Por que 20 soldados alemães conseguiam controlar e matar vinte mil judeus? Qual o sentimento cultural e religioso que impediu a reação?
SCLIAR: Os nazistas eram o governo, então eles representavam o estabelecimento, tinham essa autoridade. As coisas foram feitas gradualmente e passaram despercebidas. Primeiro na tua carteira de identidade tem que figurar que tu és judeu. Depois eles dizem que tu tens que usar uma estrela amarela, em destaque. E assim vai indo, é um processo de desmoralização psicológica. O que não quer dizer que não houve resistência. Sim, houve resistência até heróica.

PRESS: O que tu achas dos movimentos neonazistas, a direita européia?
SCLIAR: O movimento é diferente, também é um mecanismo de intolerância, mas aí é basicamente contra o imigrante. É um luta global, pois tu não podes impedir que as pessoas se desloquem de um país para outro em busca de oportunidade para trabalhar. Os Estados Unidos estão cheios de hispânicos, brasileiros. A França está cheia de marroquinos. Aí tu pegas gente perturbada, desempregada, e diz que a culpa é dessas raças inferiores que vem e roubam o emprego deles. Que eles querem dominar a Europa e acabar com a raça branca.

PRESS: Schopenhauer e Nietzsche não têm mais espaço hoje?
SCLIAR: Não, essas pessoas que integram esses movimentos são primárias, elas não lêem. Não acredito que eles leiam isso, acho que eles não lêem nada. O que eles fazem é se reunir e comentar uns com os outros que precisam acabar com a escória. Não tem ideologia. Acho que neste sentido o Brasil é generoso, neste processo de aceitação da mistura de raças. O que não quer dizer que não tenha racismo no Brasil. Tem, mas é um racismo mais envergonhado.

PRESS: Ficas brabo quando te chamam de pardal (apelido pejorativo dos judeus)?
SCLIAR: Não, quando era criança até me importei, briguei, apanhei, mas hoje não me incomodo, até porque hoje pardal são aqueles controladores de velocidade. Grande parte do humor judaico são gozações com o próprio povo judaico. Tem muita piada assim, que se contada por judeu é engraçado, mas se é contada por um cara que não é judeu é considerado anti-semita.

PRESS: Que a piada tens para contar?
SCLIAR: Tenho um livro sobre humor judaico que tem muitas piadas. Mas as de que eu mais gosto são aquelas sobre as mães judias.

PRESS: São realmente zelosas as mães judias?
SCLIAR: Hoje não mais. A minha geração ainda teve muito disso, as mães judias são aquelas superprotetoras, inseguras, isso é a geração dos imigrantes. Mas isso mudou, as gerações nascidas aqui já sofreram o processo de aculturação, que é muito rápido, e a segunda geração já é muito integrada na realidade brasileira.

PRESS: E a religião, como a tua geração via a religião e como essa geração de hoje vê?
SCLIAR: Nunca fui muito religioso, não sou crente. A minha geração não é uma geração muito religiosa, nós íamos à sinagoga nas festas, até porque muitos de nós éramos de esquerda, então aí mesmo é que não íamos. Há uma volta à religião, o interessante que não é só na religião judaica, tem muita gente que está se agarrando na religião.

PRESS: Qual a tua relação com Deus?
SCLIAR: Pessoas que têm uma formação cientifica, como eu tive, têm dificuldade em crer. Acho que as pessoas têm todo o direito de pensar que a vida não pode ser só isso, e que a vida não pode terminar só na morte. Não tive evidência alguma, mas aceito que as pessoas acreditem, ainda que para mim seja absurdo.
As pessoas que acreditam, que têm fé, elas se saem melhor do que as descrentes. Mas tem uma coisa que eu não gosto na religião: quando o cara que é religioso quer fazer com que as pessoas façam o que ele acha certo ou o que a religião acha certo sem deixar que as pessoas escolham. E o cara que quer converter as pessoas à força. O fundamentalismo é uma coisa incompatível, e o crescimento dele é alarmante.

PRESS: Nunca falaste com Deus?
SCLIAR: Olha, não creio que ele me respondesse. Eu só falaria com Deus por ligação a cobrar! (risos) Olha, tu querias uma piada judaica, tá aí!... (risos). Está aí, uma piada contada por mim! Só falaria com Deus por ligação a cobrar (risos).

PRESS: Tu disseste que odeias ter inimigos, mas se o Paulo Coelho escutasse o que tu falas do livro dele acho que ele seria teu inimigo.
SCLIAR: Somos muito amigos, eu encontro com ele em eventos literários como o Salão do Livro de Paris – ele não havia sido convidado mas estava lá.. Ele deu um banquete para 700 pessoas, que foi o acontecimento do Salão. É uma pessoa extremamente agradável, um homem que é impossível tu não simpatizares, carismático, grande comunicador.
Ele não é um bom escritor. Ele não precisa ser um bom escritor. Ele tinha uma dificuldade muito grande de se expressar em português. Tinha dificuldade de redigir uma frase. Escreve coisas comuns, diz aquelas coisas, assim, “acredite no seu coração, sorria, abrace o mundo que ele te abraça”.
E a terceira coisa é o plágio, em mais de uma ocasião. Uma vez constatei uma história que ele escreveu para o jornal O Dia, do Rio de Janeiro, que era claramente copiada de um conto do Kafka. É um negócio que não entendo. Se ele colocasse, “olha, segundo Kafka”, já não seria plágio.

PRESS: Mas como esse cara consegue vender tanto livro?
SCLIAR: Porque ele corresponde a uma necessidade, ele representa a mensagem que as pessoas querem ouvir. Livro não é uma coisa amistosa, os livros intimidam. Observe uma pessoa que não está familiarizada com os livros dentro de uma biblioteca A pessoa fica cheia de dedos, com medo de fazer bobagem. Aí, de repente, surge um livro que as pessoas podem ler, e gostar, e entender, e achar que com aquilo a vida delas vai melhorar.
Essa pessoa pode ficar grata ao Paulo Coelho o resto da vida, vai comprar todos os livros dele. Além disso, o marketing dele é soberbo, ele vem da área do disco, ninguém sabe vender mais na área cultural do que os que trabalham com disco.

PRESS: E a Academia Brasileira de Letras pode ser levada a sério mesmo com Paulo Coelho, José Sarney?
SCLIAR: A Academia tem um critério de seleção... olha, é um jogo que tem muitos componentes políticos, sociais – e literários também. Eu te diria que nas últimas escolhas o critério literário foi bem utilizado. Por exemplo, o João Ubaldo Ribeiro é um critério literário razoável.

PRESS: Mas o Mario Quintana não conseguiu entrar. 
SCLIAR: É que o Mario Quintana concorria com um cara muito poderoso na época, o ex-ministro da Cultura Eduardo Portela. A chance do Mario era zero. Ele teria que ter montado uma campanha...

PRESS: Na Academia Francesa tinha uma Marguerite Youcenar...
SCLIAR: Não, mas na Academia Francesa, se tu queres saber, tem uma Marguerite Yocenar, mas tem também um cara cujo grande mérito foi ter construído o Canal de Suez.
Queriam colocar ele na Academia, mas o cara não tinha escrito nada.
Aí pegaram uma carta que ele escreveu para a irmã, onde ele falava do pôr-do- sol do Canal de Suez.
Queriam dar o título para ele de qualquer forma. Então, assim, o Pitanguy, por exemplo, ele está na ABL porque escreveu um livro? Não, porque é uma figura importante dentro da Medicina.

PRESS: Por que que está o Pitanguy e não o Oscar Niemeyer?
SCLIAR: Provavelmente porque ele nem quer.

PRESS: Tu quiseste alguma vez?
SCLIAR: Sou muito convidado, e sou convidado por pessoas que são meus amigos, até fico chateado em dizer não. O que eu digo é o seguinte: se houver um processo de transformação da Academia, contem comigo.

PRESS: Todo escritor adoraria ir para a Academia?
SCLIAR: Não. E eu vou te citar três escritores bons que não quiseram ir: Carlos Drummond de Andrade, Erico Verissimo e Rubem Fonseca. Tem muita gente que não quer entrar na Academia. Eu não debocho da Academia, não falo mal, acho que lá tem muita gente de valor, inclusive gente da minha geração, e a minha esperança é que ela melhore.

PRESS: Como está a intelectualidade brasileira?
SCLIAR: É uma coisa semelhante ao que aconteceu nos países que tiveram um longo período autoritário, como Portugal e Espanha. Quando tem ditadura é muito fácil os intelectuais se agruparem e terem um denominador comum, todos eles são a favor da liberdade. Quando há democracia começam as brigas. Além do mais nos últimos tempos a discussão no Brasil e em outros países está muito baseada na economia em termos de balança de pagamentos, taxa cambial, etc. A verdade é que os intelectuais perderam terreno. Houve uma época em que a discussão era muito em termos de idéia. Hoje é muito em torno de números, performances...

PRESS: Teus cinco autores favoritos
SCLIAR: Rubem Fonseca, Luis Fernando Verissimo, João Ubaldo Ribeiro. Tem ainda Manuel de Barros, grande poeta, e Dalton Trevisan.

PRESS: Como tu vês o jornalismo?
SCLIAR: Não sou jornalista, eu sou um colaborador de jornal. Tenho uma admiração pelo jornalismo, aprendi muitas coisas nele. Fico possesso com gente que fala mal do jornalismo. Só gente que não conhece é que fala mal. Realmente o meu convívio com o jornalismo foi contínuo. Aprendi, em primeiro lugar, a fazer um texto enxuto. Aprendi a ir direto ao ponto, entregar o texto na hora, aprendi a me restringir a um certo espaço. Porque o mundo está cheio de gente que quer escrever, e se todos forem escrever não há lugar para todo mundo.
Eu escrevo para o caderno Vida, que circula na Zero Hora de sábado e para o Donna, que circula no domingo. Escrevo com muita antecedência por causa dos problemas de ilustração. E dos dois eu gosto muito, o Vida porque é uma forma de escrever sobre Medicina da forma mais humanista.

PRESS: Há muito espaço para esse tema – hoje o médico Dráusio Varela transformou-se em uma personalidade...
SCLIAR: Há espaço para gente que por meio do texto explore esse lado da Medicina, que não é o lado tecnológico. Desmistifica e facilita para as pessoas a aproximação com a Medicina. Hoje em dia esse processo é chamado de humanização da Medicina. Em várias faculdades há disciplinas que se chamam de humanidades médicas, que estudam coisas assim como ética, história da medicina e comunicação médica.

PRESS: Autores de todos os tempos.
SCLIAR: Franz Kafka, Clarice Lispector, um escritor judeu russo chamado Isaac Babel. Depois, Tolstoi e Machado de Assis, que é imbatível.

PRESS: Jogo rápido: Time.
SCLIAR: Cruzeiro de Porto Alegre.

PRESS: Comida.
SCLIAR: A mais simples possível, a italiana.

PRESS: Cinema.
SCLIAR: Sou fã, não tem semana que eu não vá.

PRESS: O grande filme.
SCLIAR: Espero que alguém se lembre, é um filme muito bom chamado Milagre em Milão.

PRESS: Uma mulher bonita.
SCLIAR: Minha mulher, Judith.

PRESS: Uma cidade.
SCLIAR: Porto Alegre.

PRESS: Televisão.
SCLIAR: Documentários e filmes.

PRESS: Um grande nome da História.
SCLIAR: Albert Einstein.

PRESS: Restaurante.
SCLIAR: Eu gosto mesmo é de praças de alimentação.

PRESS: Um sonho de consumo.
SCLIAR: Nenhum, tenho até mais do que preciso.

PRESS: Quem ganha mais dinheiro, o médico ou o escritor?
SCLIAR: Provavelmente o escritor. Mas por muito tempo o médico sustentou o escritor.

PRESS: Tens livros publicados em quantos países?
SCLIAR: Mais de vinte.

PRESS: Quantos títulos?
SCLIAR: São 63 livros publicados, mas muitos são coletâneas.

PRESS: Qual o que te deu mais prazer de publicar?
SCLIAR: O Centauro no Jardim.

PRESS: Lês a Bíblia?
SCLIAR: Sim, a Bíblia é algo impressionante. Um livro que foi escrito há dois mil anos e ainda comove, e te convence e é atual, uma obra-prima.

PRESS: Um ídolo.
SCLIAR: Garrincha.

PRESS: Gostas de futebol?
SCLIAR: Sim, via quando eu tinha time (o time Cruzeiro de Porto Alegre está “desativado”).

Reportagem de   :